No mundo contemporâneo, onde a conectividade parece onipresente, a discussão sobre solidão e solitude ganha contornos de urgência e complexidade. A Live 2, intitulada “Solitude e saúde social: qual o significado e relevância?, contou com a participação do Dr. Rodrigo Schultz, Dra. Carla Núbia Borges e Dra. Cinthia Alves Prais, e propôs-se justamente a desvendar esses conceitos, muitas vezes mal compreendidos e intercambiados. O objetivo central é claro: proporcionar uma distinção nítida entre solidão, solitude e isolamento, termos cujas nuances são cruciais para a compreensão do bem-estar humano.
A ambiguidade terminológica e a percepção pública
A literatura, inclusive a acadêmica, frequentemente contribui para essa confusão. O Dr. Rodrigo Schultz, neurologista e professor, aponta para a ambiguidade terminológica:
“A literatura é um pouco confusa. […] Há uma literatura mais recente e a terminologia não é bem clara, precisamos ler o parágrafo, ler a página, para compreender o que o autor quer dizer. No entanto, a palavra loneliness, que para nós é traduzida como solidão, em alguns textos com mais de três ou quatro anos é utilizada como sinônimo de solidão, solitude, isolamento e isolamento social.” – Dr. Rodrigo Schultz
Essa imprecisão linguística, reforçada pela atribuição de frases célebres a interpretações ou conceitos equivocados, como uma citação de Jung muitas vezes relacionada à solidão, quando de fato aponta para a solitude, complica a percepção pública e científica. A Dra. Cinthia Alves Prais, psicóloga, ressalta a magnitude dessa “confusão cultural e temporal” sobre os conceitos:
“Até quando a gente fala, por exemplo, aqui dessa confusão cultural, até eu diria, quem sabe, temporal, do conceito de solidão e de solitude.” – Dra. Cinthia Alves Prais
Solidão como dor, solitude como prazer
A distinção fundamental é apresentada de forma concisa pela Dra. Carla Núbia Borges, geriatra e professora:
“A solitude é o prazer de estar só. A solidão é a dor de estar só.” – Dra. Carla Núbia Borges
A solidão, portanto, é um sentimento de desconexão e vazio, uma experiência negativa e indesejada. É a dor que se sente pela ausência de companhia ou pela falta de conexão significativa, mesmo em meio a outras pessoas. A solitude, em contraste, é um estado voluntário de estar sozinho, um espaço de autoconhecimento, criatividade e descanso emocional. É um refúgio para a mente, onde a pessoa se encontra consigo mesma de forma produtiva e prazerosa. A Dra. Cinthia Alves Prais, com sua expertise em psicologia, detalha as nuances que levam a essa confusão:
“Misturam essa necessidade de recolhimento, que em algum nível de profundidade e de satisfação pode se comparar com a solitude, ou com a dificuldade, ou o desprazer na interação com outras pessoas, em dividir o próprio tempo, energia, atenção, que a gente tá chamando aqui de solidão, e, em última instância, de isolamento, quando há, de fato, o interesse em esquivar-se da interação social.” – Dra. Cinthia Alves Prais
Essa observação da Dra. Cinthia é crucial, pois aponta que nem todo recolhimento é solitude, e nem toda dificuldade social é solidão, existindo o isolamento como uma terceira categoria.
A pressão social contra a solitude
No entanto, a sociedade impõe uma pressão considerável que dificulta desfrutar-se da solitude. O Dr. Rodrigo Schultz ilustra essa problemática com um caso real:
“Eu sou responsável por um ambulatório acadêmico na Zona Sul de São Paulo pertencente à Universidade Santo Amaro, UNISA. […] e atendemos recentemente uma moça jovem, […] professora do ensino público. Perguntei para ela o que estava fazendo ali. Ela disse ser professora e que a psicóloga da escola solicitou que marcasse com um neurologista, pois pensou, talvez, que ela tivesse algum grau de autismo ou algo nesse sentido. […] A pessoa nos informou que num sábado houve uma festa entre familiares e amigos. No entanto, disse que não queria ir, mas ficar em casa, quando seus familiares ficaram espantados. Simplesmente ela nos disse que gostaria de ficar em casa e fazer algo para si, ter um momento do seu interesse e agrado. Ou seja, ela não foi compreendida por ter se recusado a fazer um programa cujos familiares e pessoas responsáveis entenderam ser um comportamento inadequado ou suspeito de anormal.” Dr. Rodrigo Schultz
A narrativa da professora, que foi encaminhada a um neurologista simplesmente por preferir passar um tempo consigo mesma, revela o estigma e a incompreensão social em torno da solitude. Há uma expectativa implícita de que devemos estar sempre engajados socialmente.
Essa pressão social cria uma barreira para que as pessoas se permitam desfrutar de momentos de recolhimento, temendo o julgamento ou a patologização de um comportamento perfeitamente saudável.
A solitude como um instrumento para o bem-estar
No entanto, a solitude é, de fato, uma decisão poderosa e um caminho essencial para o autoconhecimento e o bem-estar emocional. A Dra. Carla Núbia Borges descreve a solitude como um “sentimento enigmático e ao mesmo tempo poderoso”, com a capacidade de transformar pessoas e condutas. Ela destaca que:
“15 minutos em solitude são capazes de reduzir o alto padrão de sentimentos euforizantes e negativos; muita depressão, tristeza ou euforia; excesso de nervosismo ou ansiedade. 15 minutos de solitude são capazes de reduzir a estimulação desse sentimento de alta resolução e de elevar sentimentos de calmaria, raciocínio, calma, tranquilidade e ponderação.” – Dra. Carla Núbia Borges
Essa capacidade de regulação emocional torna a solitude uma ferramenta valiosa no cotidiano. Além disso, a solitude é um ato de introspecção profunda, um “olhar para dentro”, como sugerido pela famosa frase atribuída a Carl Jung, mencionada pela Dra. Carla Núbia: “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”. É nesse espaço de recolhimento que a criatividade floresce, e condutas mais ponderadas e assertivas se tornam possíveis.
A distinção clara entre solidão e solitude é mais do que um exercício semântico, é uma ferramenta essencial para a saúde mental. Compreender que a dor da solidão deve ser acolhida e gerenciada, enquanto o prazer da solitude deve ser cultivado, permite uma relação mais saudável consigo mesmo e com o mundo. Reconhecer a solitude como uma escolha válida e benéfica é um passo crucial para liberar as pessoas da pressão social de estarem constantemente conectadas e capacitá-las a encontrar um equilíbrio que nutra sua saúde física, emocional e social.