O custo oculto da desconexão: impactos da solidão na saúde integral

No artigo anterior desvendamos a solidão como uma “epidemia invisível”, um sentimento universal que vai muito além de um simples estado de espírito. Agora, é crucial nps aprofundarmos nas sérias consequências dessa desconexão, compreendendo como ela impacta nossa saúde física, mental e social. A solidão, embora não seja propriamente uma doença, é um poderoso catalisador de riscos para a saúde, muitas vezes comparável – ou até superior – a hábitos nocivos já bem estabelecidos da consciência pública.

Solidão: mais do que um sentimento – um fator de risco
A solidão, quando persistente, funciona como um fator de risco preponderante, com uma força impactante sobre a nossa saúde. A Dra. Carla Núbia Borges destaca essa relevância:

“A solidão traz uma leitura diferenciada em saúde. Ela tem sido implicada por muitos autores como um fator de risco preponderante, até mais forte do que muitos hábitos, como o tabagismo, obesidade e sedentarismo.”

– Dra. Carla Núbia Borges

Essas comparações não são exageradas. As evidências mostram que a solidão aumenta significativamente o risco de diversas condições adversas. O Dr. Rodrigo Schultz apresenta dados alarmantes:

“Há um risco 26% maior de morte prematura, 29% maior para infarto do miocárdio, 32% para um acidente vascular cerebral; risco maior para suicídio, diabetes e descontrole da diabetes, bem como obesidade e abuso de álcool; e um risco três vezes para ocorrência de demência.”– Dr. Rodrigo Schultz

A Dra. Floriana Bertini reforça essa magnitude, traçando um paralelo direto:

“E a solidão é, sim, fator de risco da mesma magnitude do tabagismo.” – Dra. Floriana Bertini

Ainda assim, é notável o contraste na forma como a sociedade, e até mesmo a classe médica, trata esses fatores de risco. É muito mais fácil falar sobre tabagismo do que sobre solidão como algo prejudicial, evidenciando um tabu ainda presente.

A neurobiologia da solidão
Mas como a solidão, um sentimento, pode ter um impacto tão direto e físico em nosso organismo? A resposta está em sua neurobiologia. A solidão desencadeia uma complexa cascata de eventos inflamatórios e neuroendócrinos que afeta nosso corpo em nível celular.

A Dra. Carla Núbia Borges explica o mecanismo:

“A solidão tem uma neurobiologia. A solidão tem um desencadeamento de fatores inflamatórios, de fatores que vão interferir na resistência vascular, na pressão, na imunidade, na liberação de substâncias, porque quando nós sofremos qualquer injúria, seja injúria física ou emocional, há estímulo em diversas áreas do nosso organismo. Existe um eixo neuroimunoendócrino, chamado de eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, três glândulas importantes que se interligam e liberam substâncias que são responsáveis pelo nosso equilíbrio. E a hiperestimulação desse sistema acaba por gerar dano celular, liberando substâncias pró-inflamatórias.”– Dra. Carla Núbia Borges

Essas substâncias pró-inflamatórias elevam a pressão arterial, contribuem para a obesidade, enfraquecem o sistema imunológico e causam fraqueza muscular. A fraqueza física, por sua vez, leva a um ciclo vicioso: menos atividade, mais imobilidade, perda de massa muscular, depressão e má alimentação, o que perpetua a desconexão e o adoecimento.

Mais preocupante ainda, a solidão pode afetar diretamente o cérebro, envolvendo a barreira hematoencefálica e estimulando células que promovem placas, aumentando o risco de demências futuras. A solidão, portanto, “gera um circuito de muitas alterações que se unem, o social, o químico, o biológico, e ocorrência de doenças”, como alerta a Dra. Carla Núbia Borges.

Fatores desencadeantes e a fragilidade humana
A solidão é um sentimento individual, mas transversal, atingindo todas as idades. Seus fatores desencadeantes podem ser intrínsecos e extrínsecos. Os fatores intrínsecos incluem a solidão das relações como as dos “ninhos vazios”, perdas pessoais, expectativas não realizadas ou a incapacidade de manter uma rede social saudável. Os extrínsecos, por sua vez, estão relacionados ao ambiente e à vulnerabilidade social e clínica, que se retroalimentam negativamente.

A Dra. Carla Núbia Borges conecta a solidão ao conceito de “fragilidade”, especialmente em um contexto de envelhecimento populacional:

“A fragilidade vem tomando mais força nos últimos anos. Existem critérios demonstrados quando uma pessoa não está bem e entrando numa zona mais perigosa de adoecimento, com desfechos negativos, com risco de mortalidade aumentado. […] E ela [solidão] entra como um fator desencadeador. Como foi dito, não é uma doença, é uma condição, é um sentimento, é uma situação que impõe aquele organismo a desencadear o funcionamento disfuncional, ativando todo um eixo neuroendócrino celular e provocando adoecimento, piorando os que já existem, ativando a genética já com o seu fator de risco e elevando hábitos negativos e, consequentemente, piora.”– Dra. Carla Núbia Borges

Isso evidencia que a solidão não é apenas um problema emocional, mas uma condição que impulsiona disfunções sistêmicas no corpo.

Por que é tão difícil falar sobre isso?
Apesar de todos esses impactos, a solidão permanece um tema “espinhoso” e aversivo para muitos. A Dra. Floriana Bertini reflete sobre o silêncio que envolve o assunto:

“Mas a impressão que eu tenho é que é muito mais fácil falar sobre tabagismo nos meios médicos e não médicos do que solidão como algo que não faz bem, não é? […] Então, é uma epidemia silenciosa, invisível, e silenciosa também porque a gente meio que tende a afastar, é o tabu.”– Dra. Floriana Bertini

O tabu impede a discussão aberta e a busca por ajuda. Como se esconder da dor fosse uma solução, quando, na verdade, o paradoxo é que, ao ignorarmos esse sentimento negativo, ele cresce, tomando conta e gerando um “efeito bola de neve” que afeta hábitos como alimentação, conexão e sono. A Dra. Floriana Bertini compara esse processo à “pré-contemplação” de um modelo de mudança de hábitos:

“A primeira etapa dos processos de mudança se chama pré-contemplação, de acordo com o modelo transteórico de Prochaska. […] É aquele momento em que a gente observa para um fenômeno, olha para um fenômeno e não enxerga aquele fenômeno, como se nós tivéssemos uma venda nos olhos.”– Dra. Floriana Bertini

Ainda assim, como aponta a Dra. Carla Núbia Borges, há uma riqueza de possibilidades a ser aproveitada quando a “venda nos olhos” é removida:

“Às vezes eu brinco, se tivesse uma moeda, uma pilha de moedas de ouro atrás de mim agora, mas eu estivesse olhando só para frente e não tivesse acesso ao que está atrás de mim, eu não poderia desfrutar dessa riqueza toda, eu não poderia guardar, doar, gastar, nada, né? Então, a solidão está aqui atrás da gente, atrás de muitas pessoas que preferem continuar com a venda nos olhos, até eventualmente por desinformação ou por despreparo.”– Dra. Carla Núbia Borges

Fechamento
A solidão é uma condição que perpassa todas as idades, classes sociais e culturas. Suas consequências são amplas e profundamente prejudiciais à saúde, manifestando-se em nosso organismo de maneiras que só agora começamos a compreender plenamente. Romper o silêncio e reconhecer a solidão como um fator de risco sério é o primeiro passo para uma intervenção eficaz. No próximo e último artigo desta série, exploraremos as estratégias e caminhos para construirmos conexões mais significativas e promovermos um bem-estar social duradouro.